

Neste sábado, 14 de junho, Dia Mundial do Doador de Sangue, o debate sobre a importância desse gesto de solidariedade ganha destaque. No Brasil, o cenário da doação de sangue ainda preocupa. Dados do Ministério da Saúde revelam que apenas 1,4% da população doa sangue regularmente, um índice muito abaixo da recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que sugere entre 3% e 5%.
A Dra. Maria do Socorro Ferreira, médica hematologista em Belém do Pará e leiga inaciana, aborda essa discrepância. "Nós não temos a cultura da doação", afirma, comparando o Brasil a países que, por terem vivenciado grandes catástrofes ou conflitos, desenvolveram o hábito de doar como um "ato pontual de cidadania". Para a Dra. Socorro, no Brasil, a doação muitas vezes só ocorre em momentos de necessidade pessoal ou familiar.
A urgência de aumentar esses índices é inquestionável. Com o avanço da medicina, diagnósticos precoces em oncologia e o aumento de acidentes, como os de moto – que são hoje a principal causa de aposentadoria de jovens no Brasil –a demanda por transfusões cresce exponencialmente. "Hoje em dia, você tem diagnósticos precoces na oncologia, a parte de câncer, os acidentes que acontecem... isso tudo leva a um aumento de transfusão", explica a médica. Para suprir essa necessidade, campanhas como o Junho Vermelho são cruciais, buscando "sensibilizar de uma forma de que a gente vai precisar, nós vamos precisar aumentar o nosso estoque".
Compromisso e cultura da doação: um papel ativo do cidadão
Ser um doador regular, ou "doador de repetição" como denomina o Ministério da Saúde (aquele que realiza a partir da terceira doação), exige um compromisso contínuo. Dra. Socorro enfatiza a importância da consciência e do amor ao próximo, lembrando que "sangue não se compra em farmácia, sangue não se faz em laboratório".
Para fortalecer essa cultura, a saúde pública brasileira tem investido em programas como a "Escola Cidadã", que visa educar crianças desde a educação infantil sobre a doação. No IEB, Banco de Sangue Privado em Belém, onde a Dra. Socorro atua, há um olhar especial para o doador jovem (entre 16 e 20 anos). "É um doador que precisa ser estimulado, é um doador que precisa ser conversado", pontua. Apesar dos desafios com o público jovem, como tatuagens, uso de drogas e múltiplos parceiros – fatores que podem inabilitar temporariamente a doação devido à "janela imunológica" e riscos ao paciente –, há um esforço contínuo para conscientizá-los.
A disseminação de informações através da mídia, redes sociais e universidades é vital. "A gente está na mídia, está falando nas universidades hoje, a gente tem uma boa penetração, tanto nas públicas como nas privadas, falando sobre a doação de sangue, colocando os critérios", ressalta a Dra. Socorro.
Espiritualidade e o gesto de doar: conectando-se à vida
A doação de sangue e órgãos muitas vezes transcende o aspecto meramente biológico, sendo compreendida como um gesto profundamente espiritual. A Dra. Maria do Socorro Ferreira faz uma conexão poderosa com o primeiro doador, "Jesus Cristo", que "doou tudo o que ele tinha". Para ela, o ato de doar o próprio sangue é compartilhar algo vital e sagrado, mesmo que de forma anônima. "Você dá algo que é seu, [...] você está compartilhando e está colocando dentro de outro ser que você não sabe quem é", reflete.
A experiência na área da saúde tem comprovado que a espiritualidade pode impactar positivamente a recuperação dos pacientes. "Trabalhos científicos comprovados de que pacientes que têm uma espiritualidade, não é ter uma religião, [...] elas se curam mais rápido. O tempo delas de duração no hospital é mais rápido", afirma a médica. A espiritualidade ajuda a "aceitar os seus diagnósticos de uma forma diferente".
Um exemplo tocante é o de um doador no IEB que, após a perda da esposa para o câncer, assumiu o compromisso de doar regularmente. "Ele me disse assim, doutora, eu perdi minha esposa na época, tinha um ano e meio, eu perdi minha esposa faz um ano e meio para um câncer e eu nunca tinha parado para pensar em doação de sangue, mas quando ela precisou tinha sangue para ela, e se tinha porque alguém veio e doou, então eu assumi o compromisso de vir e fazer as minhas quatro doações um ano para ajudar alguém que precisa", conta a Dra. Socorro, ilustrando como a vivência pessoal pode despertar a consciência da doação.
Dra. Maria do Socorro Ferreira, médica hematologista e leiga inaciana, em Belém/PA / Foto: Arquivo pessoal
O impacto silencioso da doação: esperança para as comunidades vulneráveis
A Dra. Socorro observa um fenômeno particular nas comunidades mais vulneráveis do Brasil: uma maior disponibilidade para partilhar. "Por incrível que pareça, nas comunidades mais carentes, nas comunidades mais vulneráveis, é onde você vê maior disponibilidade em partilhar aquilo que você tem. Isso vai ao alimento, vai ao vestuário, vai à amizade, vai tempo, e o sangue vai isso", destaca.
É nas periferias e em comunidades do interior que se observa uma grande mobilização para a doação de sangue. "Eles se organizam, eles fretam o ônibus, eles vêm para doar, entendeu? Passam uma noite viajando para chegarem aqui fazer sua doação. Então isso daí é muito pontual para a gente", relata a médica. Esse contraste revela que o altruísmo e a solidariedade muitas vezes florescem onde as necessidades são mais palpáveis.
O futuro da doação: educação e consciência coletiva
Para que a doação de sangue e órgãos se torne um valor coletivo e permanente na sociedade brasileira, a Dra. Maria do Socorro Ferreira aponta para a necessidade de um "ponto de equilíbrio", que a espiritualidade pode proporcionar: "poder olhar o outro, ver o outro, enxergar o outro, amar o outro".
A chave, segundo ela, está na educação. "Se você começa desde pequeno a criar esse hábito na criança de falar de doação, de falar da importância", e envolver os serviços de hemoterapia nas escolas, o impacto pode ser transformador. Além disso, o engajamento do jovem é fundamental: "se você vê o jovem quando ele compra uma causa, quando ele entende aquilo que está sendo repassado, ele vem e ajuda, ele faz, ele doa".
O envolvimento de empresas também é um caminho promissor. A médica cita o exemplo da Albras, uma empresa de alumínio que realizava campanhas anuais, chegando a coletar milhares de bolsas de sangue. A conscientização dentro do ambiente corporativo, ao lado da educação nas escolas e do engajamento jovem, pode impulsionar uma mudança cultural. "Falar sobre doação sem medo de ser feliz", conclui a Dra. Socorro, é o caminho para uma sociedade mais solidária.
O Dia Mundial do Doador de Sangue:
O Dia Mundial do Doador de Sangue, celebrado anualmente em 14 de junho, foi instituído pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2004. A data foi escolhida em homenagem ao nascimento de Karl Landsteiner, imunologista que descobriu os grupos sanguíneos ABO. O objetivo é aumentar a conscientização sobre a necessidade de doações regulares e voluntárias de sangue seguro, e agradecer aos doadores por seu gesto que salva vidas.