A infância, tempo que deveria ser de cuidado, escola e brincadeira, segue sendo, em muitas partes do mundo e também no Brasil, um território de dor, abandono e violência. O novo relatório do secretário-geral das Nações Unidas sobre crianças em conflitos armados revela um dado alarmante: mais de 41 mil violações graves foram registradas em 2024 – o maior número dos últimos 30 anos.
O foco do relatório está em zonas como a Faixa de Gaza, Haiti e República Democrática do Congo, mas a violência que atinge crianças e adolescentes também está enraizada nas realidades cotidianas das periferias brasileiras. Essa foi a tônica da entrevista concedida por Catarina de Santana, coordenadora de Fé e Alegria em Recife, à Rádio Amar e Servir.
“Os dados são alarmantes, mas infelizmente não surpreendem para quem atua diretamente nos territórios populares. As infâncias não podem mais esperar”, alertou Catarina.
Violência invisível, mas real
Para a coordenadora, o Brasil enfrenta uma outra forma de conflito, marcada por desigualdades estruturais, ausência de políticas públicas efetivas, racismo, e precarização dos serviços básicos. Crianças sem acesso à educação de qualidade, saúde negligenciada, violência urbana, sexual e psicológica — muitas vezes invisível ou silenciada — compõem um quadro preocupante.
“É uma violência que não se expressa apenas de forma direta, mas também estrutural. Quando uma criança com deficiência não tem acesso à saúde, ou quando o medo da violência urbana impede que ela brinque ou vá à escola, também estamos diante de graves violações”, pontua.
Segundo Catarina, a atuação de Fé e Alegria, obra da Companhia de Jesus, busca justamente enfrentar essas violências com ações concretas: projetos de fortalecimento comunitário, promoção da educação transformadora, formação de educadores, campanhas de prevenção e articulação com redes públicas de proteção.
Compromisso que vai além do território
Além do trabalho direto com crianças e famílias, Fé e Alegria participa ativamente de conselhos como o CONANDA e o CNAS, espaços de incidência política onde atua na defesa de políticas públicas integradas e do financiamento adequado. “Nós queremos que as crianças e adolescentes sejam reconhecidos como sujeitos de direitos. Isso exige escuta, presença, políticas públicas e compromisso coletivo”, afirmou.
Catarina destaca ainda que a organização está atualizando sua política interna de proteção à infância, com base nos princípios inacianos e nos desafios emergentes da realidade brasileira. “Nosso compromisso é oferecer cuidado sólido, promover redes de apoio e garantir ambientes seguros onde cada criança possa florescer.”
Esperança e transformação
Apesar do aumento de violações registrado pela ONU, o relatório também aponta avanços, como a retirada de milhares de crianças de contextos armados e novos compromissos firmados por grupos e Estados. Catarina reconhece esses sinais, mas reforça que no Brasil ainda falta colocar a infância como prioridade absoluta, como previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.
“A garantia de direitos não é apenas responsabilidade do Estado. É um dever compartilhado que exige o envolvimento da sociedade civil, das famílias, das empresas e das comunidades”, concluiu.
Ao encerrar a entrevista, a coordenadora de Fé e Alegria lança um convite à ação: “Cuidar das crianças é proteger o presente e semear o futuro. A educação, o cuidado e a mobilização coletiva são caminhos reais de esperança”.